polibã ou banheira.

 

as pessoas dividem-se entre

as que são polibã

e as que são banheira.

as primeiras, são expeditas,

sabem onde deixam as chaves,

vão muitas vezes ao médico,

não gostam de jogos demorados

nem esperam pelo pôr-do-sol.

dizem tchau para resolver as questões,

mas também se apaixonam.

as outras, lêem obras ilegíveis,

têm os cantos dos carros muito amolgados,

demoram muito a decidir o nome dos bebés,

discutem o tom azul ou verde da cor do mar,

têm cães e gatos num apartamento,

mastigam melhor os alimentos.

as pessoas banheira também

se podem apaixonar pelas pessoas polibã.


imitação.

chatwin, camus, bukowski,

pessanha, pessoa.

durmo com eles,

apertados uns contra os outros.

os caminhos das noites

estão na propriedade

das suas páginas e planisférios.

a maior parte das vezes,

ficam debaixo da minha cama,

com um separador, fechados,

para não lhes ferir as lombadas.

antes de adormecer,

deixo o braço deslizar quase até ao chão,

e a mão, que sustenta todas as suas frases,

comporta-se como uma folha de outono:

cai de forma mansa.

discuto com eles.

fazem com que as minhas viagens

aconteçam mais depressa,

mas não permitem que aponte o dedo

para dentro dos seus livros

questionando diretamente a língua pintupi,

os efeitos da peste na cidade de orão,

a cumplicidade entre a escrita e um bêbado,

os amores por vários versos ao mesmo tempo,

obtendo respostas simples e imediatas

como se estivesse a falar com os aborígenes dos lugares.

ainda assim, faço as pazes com todos eles. todos os dias.

imito-os.

 

dioptria.

o que nos salva

é a beleza do mundo

e a forma como os lugares, os mares, os animais, as plantas, os sabores,

as saudades, a literatura,

destroem as miopias que as pessoas têm sobre ele

e que as cega.

a unidade de distância percorrida em viagem

não é só o quilómetro, mas também a dioptria.


baleia.

a neve caía, em south georgia.

as suas partículas

a bater na lente das máquinas fotográficas,

pareciam sementes lançadas.

as pestanas humanas abriam e fechavam,

como se fossem escovas de limpa-vidros,

em que as gotas escorriam sem pressa.

subitamente,

numa espécie de ginástica sincronizada,

aparece o dorso de uma baleia

a fazer lembrar o teorema de pitágoras.

depois de uma das suas respirações, à tona,

partiu em silêncio.

o ir embora, sem avisar,

aplanou a hipotenusa.


círculo.

o modo natural de ser o que se é,

é sempre uma história verdadeira.

um peixe, mesmo que hesite

entre nadar à superfície ou no fundo,

é sempre um peixe.

um homem que hesite

em dizer que ama,

é um homem diferente

daquele que diz que ama.

o toque sente a epiderme.

na ausência do toque,

a epiderme continua a sê-lo.

mas o homem não sente um abraço

que não seja.

o corpo do homem devia ser instalado em círculos,

como no logotipo da marca audi ,

que não ocupam muito espaço,

e estão abraçados.

o modo natural do ser homem de abraços

deveria ser uma história em círculos.

a dificuldade em abraçar,

e de dizer que se gosta de alguém,

podia ser resolvida com círculos.

o gostar tem esta tristeza,

a de, por vezes, não se conseguir

mostrar que se gosta.

se fôssemos um círculo

o corpo obedeceria

e diria, intrinsecamente, gosto de ti .


aeroporto.

na porta de embarque,

à hora marcada,

perdi o voo.

o motivo foi um romance de gonçalo m. tavares.

os livros intervalam-nos, esperam por nós.

os aviões não.


bicicleta.

a primeira roda

talvez tenha sido inventada

na antiga mesopotâmia.

quando vejo uma bicicleta

imagino sempre o meu avô domingos,

que me deixou a bicicleta,

e o tó-zé,

que me deixou enquanto pedalava numa bicicleta.

o meu avô e o tó deviam regressar,

e o mundo devia ser plano,

para o podermos percorrer de bicicleta.


.

a relação com as igrejas

pode trazer contactos quase matemáticos.

a minha ideia de igreja é uma foto retangular,

a preto e branco, desfocada,

deixada pelos meus avós em cima de uma secretária.

a sua fé era enorme; tão grande que ia

desde a adolescência, quando casaram,

até aos dias de hoje, onde correm escondidos

à volta do céu.


post-it.

foi ao jardim e cortou uma flor.

deixou-a, na diagonal, em cima

da coberta da cama.

arrumou a paz domada dos seus dias

numa carta,

e deixou-a

debaixo da flor.

abriu o guarda fatos

e desarrumou-o

para dentro da mala.

pulou-lhe com os joelhos em cima,

conseguiu fechá-la.

antes de sair, abriu os cortinados

para deixar entrar uma claridade mais densa.

colou um post-it no rosto da parede:

“preciso de espaço para ler a divina comédia”.

e saiu.


fAmília


os meus tios, com cerca de noventa anos, e rostos de pergaminho,

falam com as personagens das telenovelas

numa tentativa de interação com o mundo.

defendem-se sempre um ao outro

mesmo que se encurralem a si próprios.

não sabem como se escreve a palavra família,

mas sabem que é uma palavra sublinhada.


rugas.

não existem rugas.

há o franzir do rosto

à intensidade da luz.

e na ausência de luz,

também não há rugas.